The Leftovers: O horror do arrebatamento

Quando entes queridos somem no ar? Quão frágil é o tecido conjuntivo entre todos nós para algo pequeno cortá-lo de forma tão irreparável?

The Leftovers: O horror do arrebatamento

Fonte: HBO

Ao ser lançado em 2014, as críticas iniciais a "The Leftovers" estavam preocupadas com a desolação do programa e com a preponderância de mistérios, especialmente à luz do show anterior de Demon Lindelof, Lost, que havia tido sua temporada final a poucos anos. Além disso, havia uma preocupação de que a nova série não seria capaz de manter a atenção do público, porque não tinha a leviandade scifi ação-aventura de Lost para quebrar o clima mórbido/melancólico. Para mim, essa foi a impressão crítica, e em parte porque não cheguei a este seriado até hoje, 2021, e por isso perdi toda a discussão. Felizmente, através de críticas que li, notas em sites conceituados e indicações de amigos e programas que acompanho, já sei que o show não se prendeu em nada em Lost e durou o quanto tinha que durar, mantendo um legado tão sólido que 6 anos depois tem pessoas como eu interessadas nele.

Nós começamos com um único vislumbre do incidente que leva ao trauma que permeia todo o planeta. O sofrimento, é tão bárbaro internamente quanto poderia ser: uma mulher sobrecarregada de tarefas, trabalho e um bebê chorando, até que o bebê desaparece. Logo, percebemos que não é apenas seu bebê, um carrinho de compras serpenteia para a parte traseira de um carro,  alijado de seu dono, agora desaparecido. No fundo, um carro viaja fora de controle para outro e o mundo perde totalmente o controle de si mesmo em um instante. Paralelamente, o delicado dilúvio em cascata de Max Richter nos leva a uma coleção de ligações de emergência, ecoando não muito sutilmente as memórias de 11 de setembro. Esse é o conceito do romance de Tom Perrota, observando como uma massa de eventos pode espalhar-se para um estado de trauma coletivo. Como seguir em frente? E não apenas seguir, mas seguir juntos?

Além da abertura, The leftovers no "demos" sua preocupação primordial. Estamos em Nova Yourque acompanhando o chefe de polícia Kevin Garvey em sua corrida matial, ouvindo as lembranças anuais daqueles que desapareceram ao redor do mundo.  Esta é a força força do programa, algo que espero que o show aperfeiçoe ao longo das próximas temporadas tal qual Lindelof fez em Watchmen: contrução de mundo sem esforço/pressa. Como você mostra os efeitos de um mundo onde 2% da população desapareceu sem explicação? Um homem atira em um cachorro na frente do protagonista e vai embora. Mais tarde, o proprietário nem se importa, já que a perda já não significa nada. Na escola, um oração opcional para lembrar os falecidos, enquanto alguns alunos zombam o momento com humor negro literal. É, perversamente, a história ideal para o mundo naquele contexto.

Os eventos supracitados são importantes para mostrar com que rapidez o estranho, o surreal e a ficção científica tornam-se corriqueiros em um ambiente que se estabelece a partir do trauma. A vida precisa seguir e para tal mantimentos, são obrigatórios, bem como o trabalho para ocupar os dias e o conforto banal para não nos perdemos no trauma. Para tal, profissões inteiras são criadas para justificar o evento, para reduzi-lo a um momento gerenciável, que se pode explicar e racionalizar com políticas e ações afirmativas. Obviamente, não é isso que resolverá nada, embora sejam ações necessárias. O mais importante é a discussão em torno do significado infincado na palavra "juntos", quando filhos, pais, amigos e entes queridos simplesmente desaparecem. Nesse contexto, quão frágil é o tecido conjuntivo entre todos nós, quando é necessário algo tão pequeno para corta-lo de forma tão irreparável?

O que não percebi, pelo menos na maior parte do episódio, é que estava recebendo também o retrato de uma família depois do evento.  Ainda que nenhum dos Garveys tenha partido há três anos, todos estão separados uns dos outros. De um lado, Kevin tenta manter uma aparência de controle utilizando-se de seu trabalho, quase sem contatar o quão fraca é a conexão com sua filha, Jill. Por outro lado, Tom (o irmão), largou a faculdade e está trabalhando para Holy Wayne, um guru que encontrou uma lacuna que poderia preencher em um mundo em busca de significado. Laure, a esposa de Kevin, juntou-se ao Guilty Remnant, o culto fumante inveterado e que vive em grupo numa prática de silêncio agressivo e controlador. Eles ainda são uma família? Já passamos do compreensível, do lógico, da realidade que podemos compreender e passados para outro momento da história - podemos fazer nossas próprias regras e dizer o que porra quisermos -.

A questão, então, é tentarmos nos agarrar às coisas? Tentamos manter o centro? Ou ceder - ao niilismo, à exploração, à violência ou à decadência? Ou encontramos algo novo? Se não podemos voltar, em que podemos trabalhar, em vez disso?

Nota: ★ ★★ ½

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